As três primeiras e fundamentais necessidades do homem são o alimento, o traje e a casa. O acto de comer e o acto de se cobrir são insubstituíveis por qualquer outro tipo de produto. Todavia a casa pode ser suprida por um abrigo natural ou artificial. Durante milénios, as grutas e, posteriormente, a tenda consti tuíram para o homem primitivo e nómada uma forma de refúgio e de so brevivência frente às condições atmosféricas e ao ataque dos animais. Nesta medida, pode afirmar-se que o traje constitui, na verdade, a segunda necessidade do homem, tendo sofrido ao longo dos tempos e, no nosso território, uma evolução muito lenta e progressiva.
Muito embora tenha sido nos climas tropicais que os adornos ganharam uma expressão de vestimenta, desconhecendo-se nessas áreas geográficas e, em tempos pré-históricos, o traje, os Neanderthais europeus e peninsulares de senvolveram adereços vários e contas, imitando os Sapiens Sapiens que executavam colares e amuletos mágicos, que penduravam ao pescoço.
Podemos recuar a uma época remota e referir que a cultura e a arte portuguesas têm o seu início em Foz Côa, 20 000 anos atrás. O alargado espaço de tempo que ocorreu nestes últimos vinte milénios, e todas as muitas e variadas mutações a que estiveram sujeitos, conferiu aos povos pe ninsulares uma sedimentação de diversificadas e muito relevantes experiências. Não pode deixar de se registar também que o território foi habitado por hordas de invasores, provindos da África hominídea, mas também do Centro, do Leste e do Norte da Europa, que por aqui passaram e/ou se instalaram. Grupos humanos, vindos por terra e por mar, provenientes das primeiras civilizações do Médio Oriente, da Europa do Sul e do Norte de África, deixaram rastos de que a romanidade e a cultura islâmica constituem os mais fortes traços de carácter, de modos de vida, de costumes e de permanência cultural secular.
A fundação da nacionalidade acontece, como é sabido, no século XII, emergindo, em 1143, um reino que se distingue de Leão e de Castela. Este povo exprime-se através de uma língua própria, criando, em consequência, uma literatura. Tem sido fundamental à cultura portuguesa uma atenta e especial
relação do homem com a natureza, sendo também de salientar a sua forte componente poética e religiosa. Esta última característica manteve-se até aos anos 60 do século XX, quando se dá início, ou se expande, o sentido e o entendimento de novas relações sociais, baseadas na relevância de uma ética de civismo e de laicidade. Esta grande ruptura marcou a sociedade portuguesa, muito especialmente depois da Revolução de 74, mas não deixou de se manter um lastro de religiosidade, menos crente e mais cultural, que constitui uma das raisons d’être do ser Português.
A língua da soidade, ou da saudade como hoje se designa, é bem definidora da axial unicidade cultural de um povo que, embora se desmembre numa variada miscelânea de costumes, de modos de estar e de vestir, assume no seu plurissecular rectângulo geográfico, uma mesma forma de ser que se pode traduzir facilmente no entendimento e na análise do vocábulo medieval respeitante à saudade.
A história e traje de um povo
A capacidade para criar símbolos provém dos nossos antepassados africanos, por via dos Cro-Magnon, de que o Homo Sapiens Sapiens descende. Nem o Me solítico nem o Neolítico se desenvolvem universalmente nos mesmos tempos históricos, existindo discrepâncias no seu aparecimento nos diferentes continentes e regiões, razão pela qual o texto prosseguirá tendo como base a cronologia ibérica. De referir, sumariamente, que os deuses agricultores e criadores de gado vêm substituir os deuses dos caçadores 1. A tese da neolitização do centro litoral português, formulada por Zilhão, foi efectuada por colonização marítima, cuja economia se baseava no cultivo do trigo e da domesticação da ovelha, na manufactura de cerâmica e de pedra polida. Assim, o Algarve e o li to ral entre Tejo e Mondego foram os locais de instalação dos primeiros agricultores do Ocidente, semelhantes aos das regiões de origem dos grupos pioneiros que espalharam o Neolítico pelo Mediterrâneo ocidental.
É nesta fase histórica que se desenrolam dois acontecimentos revolu cio nários: a domesticação das plantas e dos animais. Estes eventos vieram permitir a passagem do nomadismo ao sedentarismo, visto que o homem deixou de estar sujeito à exaustão ou rarefacção de alimentos nos locais onde foi ha bitando. A primeira necessidade humana, o alimento, passou a ficar potencialmente resolvida, na medida em que a solução para a recolha dos seus víveres lhe ficou acessível .
A descoberta da agricultura foi, como se sabe, uma imensa revolução.
Deveu-se ao acaso e foi obra da mulher. A caça e a deambulação pela natureza continham perigos que não ameaçavam tanto as mulheres, pelo facto de ficarem com frequência de guarda ao lar (na acepção de fogo mantido) e a
tratar dos respectivos filhos. Numa cronologia portuguesa, pode-se acrescentar que o traje português, na forma de um manto de pele, é contemporâneo das gravuras de Foz Côa com cerca de 20 000 anos. Os Sapiens Sapiens inauguraram
uma forma rectangular de vestimenta, feita da pele do animal ca çado, que veio a ser reproduzida na tecelagem, a partir de uma ruptura histórica decisiva, o chamado Neolítico. Tal como os menhires constituem a mais arcaica afirmação da arquitectura implantada no solo, o rectângulo têxtil constitui a forma basilar da veste, porque persegue o desenho antropomórfico e filiforme, quer da figura humana, quer da representação da sua sombra projectada no solo.
Enquanto a verticalidade do menhir é imutável, o rectângulo têxtil possui a ductilidade de ser horizontal, vertical e diagonal, de poder fazer um enrolamento, de serpentear a figura humana, de se enroscar nele e de o abraçar num gesto de amor, de protecção e de carinho materno e fêmeo. Ma nu facturaram-se e ainda se manufacturam rectângulos têxteis em todos os locais onde existem tecidos, mesmo quando a técnica não é a da tecelagem, mas a do pisoar a casca de árvore até a tornar macia e fina, domável e adaptável às arredondadas e curvilíneas formas do corpo humano. Os têxteis estão sempre presentes em qualquer cultura e geografia, porque desde a mais alta antiguidade o homem necessitou de se proteger e de se vestir. Como padrão basilar da indumentária ou como acessório desta, o rectângulo têxtil foi sendo fabricado em diferenciadas proporções; primeiro, em tiras de pequena largura e, à medida que os saberes evoluíram, em tiras de maior largura que acabaram por atingir a medida de uma figura humana que se unia em dois panos para se fazer uma manta e, finalmente, na largura inteira de uns braços abertos, destinada a cobrir o par eleito da comunidade e, em época de abundância, a de todos os pares dessa sociedade. Mantas e tapetes provêm de uma remota parentela têxtil cuja múltipla função é ainda hoje detectável nos xailes, nas envoltas, nas capas e nas colchas, que têm a sua raiz no berço da civilização, a Mesopotâmia e, afinal, em todo o Médio Oriente, de que a civilização islâmica é a mais directa herdeira, na medida em que foi habitando, sempre e até hoje, os mesmos locais, manufacturando do mesmo modo e com idênticos processos manuais e artesanais esse saber milenar de fiar e de tecer, de tingir e ornamentar.
Foi preciso tempo, muito tempo, para se mostrar e se demonstrar que o Crescente continuava a corresponder a um símbolo de unidade islâmica que permanece, até hoje, como uma importante raiz cultural portuguesa.
Escondida, escamoteada e rejeitada pelos fiéis defensores de uma fé, manteve-se subterrânea desde que foi oficial e manuelinamente, relegada como criminosa, desde o início do século XVI. Todavia, a envolvência muçulmana perseguiu o País, que mentiu a si próprio durante séculos, salvo algumas honrosas excepções, para se esquivar ao que lhe era natural.
Embora alguns pensadores, intelectuais e agnósticos, se afirmassem divergentes de uma ortodoxia que delineou a cronologia dos tempos ibéricos e portugueses, a plena afirmação da ancestralidade árabe nasce, ou melhor, floresce um dia em Mértola, no terceiro quartel do século XX, quando afincadamente um homem livre se apercebeu da relevância, da semelhança e do entrosamento entre o seu presente e o seu passado. Nesta vila alentejana, teima-se em afirmar, conservar e recuperar tudo o que é complementar da ascendência romana e cristã.
Não pode de forma alguma escamotear-se que o tronco romano e o tronco islâmico continuam a ser, até aos dias de hoje, as mais vincadas marcas da dualidade ou da alteralidade das artes decorativas portuguesas. Neste contexto, deve salientar-se que a arte têxtil abrange uma produção muito arcaica e que à indumentária se somam os tecidos, os bordados, as rendas, o bragal, as colchas, as mantas, a tapeçaria, os tapetes e todo o tipo de manufacturas
exe cutadas no tempo e no espaço com as matérias têxteis ou em conjugação com elas. Relativamente ao traje, a respectiva evolução plurissecular segue os parâmetros ocidentais cristãos desde a Idade Média. Não se poderá esquecer que os pais da Pátria foram uma galega, D. Tareja, e um françês, o Conde D. Henrique. Esta origem indica, desde logo, o modo de trajar correspondente aos respectivos reinos cristãos que seguiam os padrões decorrentes de alguma evolução medieval sobre os últimos trajes romanos.
Até ao dealbar de uma frágil burguesia nos finais do século XIV, a sociedade dividia-se entre clero, nobreza e povo. O surgimento da moda ocorre, então, na corte da Borgonha e nas diversas cortes italianas do Quatrocento. A corte de Lisboa, sobretudo a partir de D. Duarte, é fortemente influenciada pela borgonhesa, excepcionalmente ilustrada e documentada nos designados Painéis de S. Vicente, nomeadamente no painel do Infante e no painel dos cavaleiros. O traje medieval popular não distinguia, senão excepcionalmente, as vestes populares dos Portugueses, dos Espanhóis ou dos Franceses. De um modo geral, pode afirmar-se que, até à Revolução Francesa de 1789, este foi o padrão comum ao traje regional com singularidades, como por exemplo, no traje algarvio que foi seguindo formas de estar e de vestir dos mouros e sarracenos, de que adiante se tratará.
Traje regional e identidade
A indumentária religiosa, militar e civil constitui um dos reflexos fundamentais destas três componentes essenciais da sociedade moderna, que perdurou grosso modo até aos anos 60 do século XX. Por outro lado, em cada uma destas instituições abrem-se leques de hierarquias a que correspondem trajes e insígnias classificadoras, apropriadas para distinguir as gradações de cada uma das três pirâmides sociais. Enquanto as «ordens» religiosa e militar contêm os seus específicos «parentescos» de recorte bem delimitado (do mo nacal ao paramilitar), os quais não serão aqui desenvolvidos, a «ordem» civil organiza-se de forma mais complexa, criando diferenças civilizacionais e variantes culturais. Por sua vez, em cada cultura existem grupos e subgrupos com as suas classes de poder, que se vestem de acordo com o seu enquadramento urbano ou rural. A cultura regional contém uma simbólica participada de que os indivíduos se revestem e paramentam para aderir e se dissolverem na comunidade. Há formas de vestir especiais e, muito especialmente, há formas de parecer de festa e de trabalho. Significam uma forma material de acentuar e exprimir o ritual do quotidiano e o ritual em que toda a comunidade se faz engalanar e se ornamenta em dias eleitos pela mesma comunidade.
Acontece assim, por exemplo, com o traje da mordoma do Minho e com a capa de honras de Miranda, que são emblemas culturais da região porque representativos de uma herança cultural. O traje do pastor da Serra da Estrela ou o dos pescadores da Póvoa de Varzim são, na mesma ordem de ideias, a assunção da função para que foram imaginados, o pastoreio e a pesca. Não é pretensão deste ensaio definir as culturas regionais portuguesas mas tão-somente contribuir para uma análise das mesmas, através do estudo da indumentária identificadora de cada uma delas. Vão ser tratados os trajes mais significativos do património material português, porque constituem a envolvência do homem que os usa e da comunidade que os cria e produz.
Expressam uma mentalidade, resumem e espelham uma cultura. A permanência secular outorga-lhes a consistência histórica. Repetidos, geração após geração, não sem alguma lenta e diferenciada evolução, são o garante da aceitação colectiva. A escolha dos trajes que são apelidados de especiais ou exempla res, do ponto de vista histórico ou outro, obedece a critérios estéticos e formais, atendendo-se também ao local do uso e ao tipo de actividade em que eram e são (hoje, raramente) utilizados, porque está extinta a sociedade em que foram elaborados, substituída pela sociedade de consumo.
Quando, em qualquer circunstância, se pretende simplificar, ou seja, retirar apenas o essencial, para melhor se explicarem as diferenças e se estabelecerem comparações, depara-se-nos o problema da eliminação dos excedentes, das redundâncias e das sobreposições. Assim, acontece em relação à globalidade do traje comummente designado por popular. Em primeiro lugar, estas formas de vestir não são sempre populares, no sentido de serem usadas pelas camadas mais baixas da população. Parece, portanto, que a classificação de regional é a mais adequada, pois olha o traje
como um dos elementos que compõem uma cultura ligada a um espaço e que reflecte uma mentalidade e uma tradição.
Todavia, há a salientar e a atender que este tipo de indumentária é usado em dois segmentos essenciais da vida em sociedade: o quotidiano e os momentos ou dias especiais, que se integram numa actividade socialmente englobante e que se designa genericamente por festa. A festa domina, contribui e exalta sentimentos de ordem vária que congregam toda uma comunidade para se expressar de uma forma única e, frequentemente, original. Ao analisar o traje regional, há que reconhecer que este é um elemento fundamental de distinção no conjunto de itens que compõem o sentido da festa, para melhor entender esta indumentária especial e, posteriormente, atender ao modo de vestir do quotidiano, liberto de excessos e de sobrecargas ornamentais.
As festas, origens e desenvolvimento
O apelativo sentimento que emana da relação cultura-territorialidade está a converter-se, neste início de milénio, numa força agregadora e compulsiva que gera poderosos desejos unificadores entre os indivíduos que detêm, por nascimento ou consanguinidade, este sentimento de pertença. Estes laços de «parentesco» também têm crescido como criadores de conflitos, parecendo de carácter atávico e primitivo, pela violência com que são expressos e difundidos nalgumas regiões do Globo. O desporto, como o futebol, pode ser considerado como um elemento aglutinador e o seu contrário, quer a nível nacional quer internacional. Esta afirmação parece cada vez mais verdadeira em alargadas geografias do Planeta.
A análise destes acontecimentos contemporâneos, longe de repugnar e conduzir à ironia simplificadora que aliena a realidade com o depreciativo «tribalismo», recorda que o velho conceito de clã, mesmo que absorvido e integrado no sentimento pátrio, permanece como uma realidade fundamental e uma necessidade imperiosa e personificante.
A afirmação pacifica continuada, estimuladora e comunitária deste intenso sentimento que regula a reunião de famílias e aderentes num geoespaço cultural, é formalmente vivida e transmitida através da celebração de mais ou menos empolgados dias festivos, que se realizam ao longo de um calendário ritualizado, próprio de cada região, bem como da organização de uma comemoração especial que sempre se traduz numa festa.
Assim e com o intuito de interpretar os trajes tradicionais atendeu-se à importância da festa como acontecimento aglutinante na cultura nacional. Seguidamente, descrevem-se as formas de indumentária que religam aos afectos e sentimentos de origem parental ou de adopção pessoal.
Segundo Oliveira Marques, eram múltiplas as festas de raiz popular na Idade Média. Festejavam-se não somente os faustos do catolicismo, como também os do paganismo com cor de cerimónia cristã e até de usos pagãos puros. Era o caso das Janeiras e das Maias, que várias vezes se procuraram reprimir sempre sultado. As mais importantes festas cristãs, conhecidas em todo o País, eram as do Natal, da Páscoa, de S. João Baptista, do Corpo de Deus e de Todos os Santos. «Judeus e mouros tinham igualmente os seus festejos próprios » e, o mesmo autor refere que não variavam muito dos dias de hoje, os divertimentos costumados em tais festividades. Cerimónias religiosas (especialmente procissões), mercado ou feira, repicar de sinos, baile e cantorias, refeições colectivas emprestavam o colorido típico habitual. Também pouco diferentes se haviam de mostrar as grandes festas «citadinas» (que comemoravam
nascimentos, baptizados ou bodas de grandes senhores).
No entanto, algumas características particulares as distinguiam. Em primeiro lugar, as touradas… 3 «De tempos a tempos os reis aproveitavam um acontecimento de relevo, para oferecer aos povos espectáculos deslumbrantes de fausto e de composição variada. Era também um meio de ostentar riqueza e de impressionar os visitantes estrangeiros. Pela heterogeneidade das distracções, tais festas quase se poderiam comparar às feiras internacionais de nossos dias. Chegavam a durar mais de uma semana e incluíam, além dos habituais touros, canas, momos, jogos, danças e banquetes, desfiles militares, “cortejos históricos”, exibições de folclore e até autos de natureza teatral» .
Ana Maria Alves, a primeira autora de uma monografia sobre as festas políticas, refere que, por ocasião do casamento da Infanta D. Leonor com o Imperador Frederico III, em 1451, o Infante D. Fernando «veio com seus ventureiros vestidos de guedelhas de seda fina como selvagens, em cima de bons cavalos envestidos e cobertos de figuras e cores de alimárias conhecidas e desconhecidas e outras disformas e todas mui naturais» . É a primeira referência ao homem silvestre que encontramos na tradição das festas e que, associado à nova experiência africana, terá próspera fortuna nos divertimentos
do Renascimento. Se acrescentarmos a esta inovação a utilização do rio Tejo como palco das festas do mar ficará completa a variedade tipológica e estrutural das festas no País. Por outro lado, a expulsão dos judeus e mouros, ordenada por D. Manuel, em 1496, «nem por isso extingue a sua herança cultural; continuaremos a encontrar nos séculos seguintes as suas danças e culturas, assumidas por cristãos mascarados, juntamente com as danças de um novo grupo étnico que vem agora juntar-se à população: os ciganos. A voga mourisca, sobretudo, muito longe de desaparecer, aumenta, não só na Península como em toda a Europa, inserida no gosto pelo exótico que caracteriza uma das vertentes da festa renascentista» .
No reinado de D. João III, introduzem-se o «fogo-de-artifício e o uso dos arcos triunfais propriamente ditos, ou seja, inspirados nas formas romanas e erigidos em materiais leves, revestidos de forma a imitar uma construção durável» . O casamento do príncipe herdeiro, em 1552, deu origem a uma
curiosa festa em que o pretexto da noiva atravessar o Tejo deu azo à realização de um grande espectáculo: «o rio está coalhado de monstros terrestres e marinhos, grifos, animais selvagens, cavalos-marinhos, serpentes, leões, tigres, e de muitas figuras galantes por iniciativa de grupos profissionais lisboetas, além de batéis que apresentavam cantores e músicos» .
O vice-rei da Índia, D. João de Castro (1500-1548), entra em Goa como um príncipe humanista: «Debaixo do pálio, uma palma na mão, a fronte cingida pela coroa de louros. Para que nada faltasse à triunfal jornada e em tudo se ouvisse o eco da glória romana, veio ao Senado da cidade, à porta da Fortaleza, aberta em arco, saudar o herói, em latim» . Esta entrada é tanto mais de assinalar quanto se passava a milhares de quilómetros da Europa culta. O representante do soberano afirmava-se perante o estrangeiro como um Imperador e com a carga histórica e cultural que a romanidade conferia aos novos Impérios.
A ocupação espanhola (1580-1640) ocasiona a entrada de Filipe II de Espanha e I de Portugal, em 1581, e a de Filipe II, em 1619. «Esta foi a maior festa política que alguma vez se fez na cidade e certamente das maiores do mesmo género na Península. A primeira das entradas teve a intervenção de um artista régio responsável, Terzi; a segunda acabou por ter o seu programa iconográfico estabelecido por Leonardo Turriano. A introdução da linguagem erudita e a erudição humanista de tipo jesuíta, cada vez mais acentuada e que inspira motivos ornamentais, torna a entrada literalmente ilegível para a população» . Esta tipologia de peças vai passar a ter um cunho nacional e, de alguma forma, a padronizar todo o tipo de festas realizadas no País.
A partir de 1640, as entradas régias regressam ao esquema tradicional de festa em honra da monarquia, sem contrapartidas municipais, e as mais solenes voltam a estar ligadas aos grandes casamentos régios. Os rituais populares
afir mam-se com muito mais expressividade nas festas religiosas até os virmos a encontrar num novo género de dramatização política: as festas cívicas.
O cerimonial evolui pelo facto de se introduzirem novas técnicas de transportes, e a participação popular tende a ser meramente formal. Assim, prosseguir o estudo das entradas ao longo dos séculos interessa apenas na perspectiva da história das artes decorativas, porque aparecem dispositivos que denotam uma evolução do gosto áulico (caso do arco neomourisco, erguido em 1858 para o casamento de D. Pedro V; a inspiração neoclássica das decorações urbanas para o casamento de D. Luís), mas ao contrário do que sucede até meados do século XVII, «as entradas deixam de ser momentos de criação ou modernização artística para serem a exibição de objectos decorativos mais ou menos académicos, provenientes da oficialização de movimentos estéticos que se geram noutros locais e noutras circunstâncias. Numa perspectiva sociocultural, a entrada estagnou» .
Da festa barroca à festa popular
Na época barroca, as festas políticas passaram a manifestar o poder absoluto do rei, engrandecendo a figura do monarca e da família real. Não se poderá esquecer que D. João V ainda lhe acrescentou o cerimonial religioso, fazendo convergir o trono e o altar, por exemplo, na célebre Procissão do Corpo de Deus. Estão presentes o luxo e a magnificência de uma corte barroca, tanto na decoração como nas indumentárias religiosa e civil. Para tal, o rei encomendava
expressamente de Itália, nomeadamente de Roma, a paramentaria e, de França, os trajes que ia usando nos diferentes e constantes cerimoniais
de carácter político-religioso. A procissão do Corpus Christi, ainda em 1754, era «talvez a mais soberba de quantas se faziam no mundo cristão» .
Estas festas calaram fundo na tradição nacional, repetindo-se em todo o território sob variados pretextos. Além dos nascimentos, casamentos e mortes – o ciclo humano individual das famílias reinantes –, havia «os aniversários do monarca ou quaisquer outros factos que permitissem lembrar e afirmar o seu poder perante a população» .
«Para a sua concretização a festa vai conjugar todas as formas artísticas e culturais da época que são postas ao seu serviço, dando-nos uma arte “efémera”, para a qual se teve de recorrer à arquitectura, à escultura, à pintura e às denominadas artes menores, das quais destacamos a arte do traje, onde se associa a imaginação ao mundo da cor e que na Relações das Festas tem sempre um lugar de destaque. A ela estará associada a pirotecnia, a música, a coreografia, a ópera, o teatro – atraindo todos os géneros de expressão que
são utilizados como instrumentos numa sinfonia sabiamente orquestrada».
A indumentária define-se no seio do tecido social, tendo o seu lugar na encenação e no espectáculo de rigorosa regulamentação. As festas populares, no período barroco, que correspondem ao Estado Absolutista, integram-se na
organização geral e estão submetidas à ideia de consagração do poder. Intervêm nos locais e nos modos permitidos, de forma a contribuir para a pompa superiormente gizada.
A inauguração da estátua de D. José, na Praça do Comércio, deu azo a uma festa que se dava ao povo de Lisboa, «privado de outros monumentos que acabava de perder com o terramoto» . Todas estas festas, «transpondo os limites do palácio régio e da capital, encontraram, na província e nas colónias, nomeadamente no Brasil, uma larga repercussão que as transformava em acontecimentos com a participação de todo o Reino» .
Estes acontecimentos organizavam-se segundo um programa de que constava a comunicação da notícia, a sua divulgação através de pregão, pelo qual todos os moradores eram informados da boa-nova e intimados a porem nas suas casas luminárias durante três dias, no denominado tríduo, em que havia repique de sinos, missa solene, e procissão. «As ruas eram limpas e as janelas deveriam estar ornamentadas com colchas, flores, perfumes e ramos. Um bando, a cavalo, fazia um percurso pela cidade, convidando à alegria com o colorido dos trajes e o som dos instrumentos» . A luz e o ruído constituíam parte fundamental da teatralização da festa barroca. Os repiques dos sinos e as descargas feitas pelos regimentos, pelos barcos e pelas fortalezas associavam-se a essa forma tão expressiva da festa.
«Nos programas, então organizados, apareciam, entre os espectáculos que tinham grande adesão popular, as touradas, o teatro e o fogo-de-artifício, mas incluíam-se naqueles ainda: danças, de figuras ou máscaras, cavalhadas,
encanizados, elevação de máquinas aerostáticas, contradanças, carros triunfais, bailes, cantorias, agradáveis composições poéticas, repetidas ao público e outeiros. Ofereciam-se bem servidos jantares, profusas ceias e refrescos, davam-se esmolas aos primeiros. Também nestas festas se demonstrou o gosto pelo estranho e o bizarro, pois o homem do barroco tinha imensa curiosidade pelas singularidades dos países não europeus e, nos festejos que se fizeram no Porto, recorreu-se ao exotismo através de elementos inspirados na China e na América, também se denotando a permanência dos infiéis através de cortejos de mouros e turcos» .
Assim se expressou a festa barroca que, por assim dizer, padronizou os processos festivos que, desde então, se realizaram no nosso país. Haverá ainda a referir que, no reinado de D. José, «o povo continuava espectador, mas o pe -
nitenciado da Inquisição parecia reabilitado e o poder pombalino detectava na nobreza tradicional os crimes de lesa-majestade» .
Com o governo de Pombal, a «razão de Estado vai dominar todo o seu programa e a REPUBLICA vai adquirir um carácter civil. Nesta nova organização, há pouco lugar para festas. O trabalho, de forma directa ou indirecta, é su blimado, e os negociantes e os mercadores podem, em certos casos, substituir a nobreza desaparecida. Os intelectuais, arquitectos maçons, jurisconsul tos, médicos, professores, judeus ou não, podem em alguns casos, ocupar lugar de relevo nas decisões régias, apoiadas e apresentadas por Pombal para as suas reformas» .
Alguns anos mais tarde, William Beckford conta no seu diário que o Conde de Vila Nova «abriu os seus jardins à gentalha de Lisboa. Estava tudo iluminado com balões vermelhos, azuis e cor de púrpura, muitos rotos e desbotados.
Havia um coreto tosco para dançar e as modistas, costureiras e damas de companhia da cidade se exibirem nos cotillons com o Duque de Cadaval e alguns jovens de primeira sociedade, gente que só se sente bem na companhia de pessoas ordinárias» .
O comentário final é próprio de um inglês para quem era impensável esta mistura de classes sociais que sempre tem pontuado, ao longo dos séculos, o carácter de transgressão das festas portuguesas. Beckford assiste também a uma tourada em que, para a sua sensibilidade, tinham sido «massacrados quinze ou dezasseis infelizes touros». Não deixa todavia de gabar os cavaleiros que lidaram a corrida. «D. Bernardo, apesar da febre, mostrou coragem e perícia, D. José, a maior destreza e Assumar [Conde de] nada, além da sua elegante jaqueta e das suas atitudes de peralvilho» .
Pequenos apontamentos de um estrangeiro que permanece em Lisboa, nos finais do século XVIII, e que assiste, ao declinar do Ancien Régime português.
Ainda que continue a haver uma evolução na organização e nos modos da festa, esta tende a constituir-se como foi referido, na justa posição de dois espectáculos, o erudito e o popular. Enquanto o espectáculo erudito vai prosseguindo, no século XIX, no sentido de se tornar completamente hermético
para a população, o espectáculo popular retém da festa barroca a encenação, o programa, a decoração, a arquitectura efémera, a estatuária (em figuras de gigantones e nos arcos triunfais e alegóricos), prolongando as artes decorativas barrocas até aos nossos dias.
A festa popular, nas suas vertentes de ritual e ostentação, compreende vários aspectos estruturais que são retirados da festa barroca, «transbordando para os espaços lúdicos do profano os elementos da festa religiosa» . As romarias e as feiras do nosso país englobam o que Tomás Ribas designa como festança, ou seja, «qualquer estrutura ritualista ou cerimonial pré-determinada, codificada, mas sempre com muita alegria, grande envolvimento sentimental e social, sempre como um divertimento» .
Para Duvigaud, a festa é um «acto surpreendente, imprevisível, aparece tanto durante cerimónias oficiais com as quais não se confunde, como fora de toda a manifestação pública. Reveste aspectos diferentes que escapam a toda a lei: triste ou alegre, aterradora ou calma, privada ou pública.» Este autor atende sobretudo ao carácter da torrencial, energética e «exaltante subversão como característica dominante da festa» .
Não poderá deixar ainda de se referir a definição de Eugénia Gomes que, ao analisar a festa, a classifica como «um tempo denso que é também tempo de esquecimento. Implica uma transformação social, porque é um momento de contestação se não mesmo de destruição das regras… mas não contribuirá ela para manter a ordem estabelecida?» .
Atenderemos todavia ao sentido da palavra festa como vem descrita no Dicionário Geral das Ciências Humanas: «momento de dinâmica sociocultural em que uma colectividade (isto é, um grupo) reafirma, de modo lúdico, as
relações sociais e a cultura que lhe são próprias». A festa elaborava-se a partir de um tema mítico particular e organizava-se não numa desordem mas com algumas alterações à ordem, de modo a obter ou reactualizar, na consciência colectiva, o assentimento à ordem preconizada. É, portanto, essencialmente um jogo simbólico que re-situa a praxis em relação ao mito que lhe dá sentido. A festa vale o que valem para o Grupo, efectivamente, a simbólica utilizada e o mito evocado. Daqui decorrem as diferenças notórias entre a festa em meio arcaico e tradicional e a festa nas sociedades modernas .
As invasões francesas e a divulgação das ideias da Revolução de 1789, o exílio da Família Real no Brasil e a Revolução Liberal de 1820, seguida de uma guerra civil que terminará em 1834, criaram um lapso histórico de cerca de 30 anos, sem grandes festas públicas, razão pela qual as festas religiosas assumem o sentido de uma festa colectiva local, de que são forte exemplo as feiras e romarias do Norte do País. A acentuação dos regionalismos desencadeia-se a partir da década de 30 do século passado, a qual se expressa não só mas também nas formas de vestir.
Não admira, pois, que a importância da festa pública e erudita tenda a diminuir, a partir do século XIX, e que o povo tenha retido na memória o fausto das festas barrocas, criando o mito de uma Idade de Ouro. Não se poderá esquecer que, de facto, assim aconteceu.
Durante o século XVIII, chegavam do Brasil carregamentos de ouro e diamantes que brilharam por todo o País, nos palácios como nas igrejas, nos conventos, nas casas burguesas e entre o povo, pois, até as escravas usavam pulseiras de ouro fino. Parece, assim, que a simbólica Idade de Ouro se continua a repetir nas festas populares com as formas e os processos setecentistas, em que o traje está claramente contido. A forma de festa popular designada por arraial constitui e mantém as características de uma festa barroca com os seus momentos religiosos e lúdicos. O arraial passou a constituir a festa deste povo, «bem significativa de uma herança cultural, e se desaparecem algumas particularidades, criam-se outras e estabelece-se nova diversificação» .
«O espectáculo, apesar de ingénuo, sobretudo nas romarias mais nitidamente rurais, não deixa de ser brilhante. É uma profusão de cores, feita para o sol: fitas, tafetás, paninhos de algodão, papel frisado, vidrinhos, pérolas, estrelas de ouro e de prata em curvas e contracurvas barrocas compõem um nicho de santo – ou, se a estátua é pequena, um pedestal – de vários metros de altura. Baloiçando aos ombros dos homens que o transportam, atravessa a multidão numa apoteose, ao som da música de banda e de foguetes. São raras as procissões de romaria que acompanham um único andor. Os próprios santos submetem-se não à ordem hierárquica, mas à do coração popular. Não à da ortodoxia, pois é o santo mais venerado que virá em lugar de honra, seguido somente pela relíquia (muitas vezes da Vera Cruz) que o padre transportará sob o pálio» .
Os arraiais continuam bem vivos em território continental e insular. Para participar na festa, usa quem tem, e sempre que pode, o traje regional, quer ele seja de trabalho ou romaria, pois o que é necessário é representar a tradição, ou seja, encenar o mito quer nas danças e cantorias, quer nas ornamentações ou na indumentária. Por outro lado, as transformações de ordem económica e social, acompanhadas do aumento demográfico, tornam impossível que a totalidade dos autóctones, dos vizinhos e dos forasteiros, integre os arraiais vestindo a rigor. Surge, assim, frequentemente, a utilização de um xaile, lenço ou capa de sabor tradicional sobre o traje urbano com a variedade tipológica do vestir quotidiano da cultura ocidental, usada pelos citadinos e pelos emigrantes de França, da Alemanha, do Canadá, da Ve ne -
zuela, dos Estados Unidos e do Brasil.
É comum, no Continente e nas Ilhas, a revivificação das festas tradicionais que ocorrem de Junho a Setembro e que coincidem com dois factores importantes: por um lado, é a época da recolha dos produtos agrícolas, nos trabalhos sazonais do Verão; por outro, o calendário litúrgico fá-las coincidir com as festas dos Santos Padroeiros. Recentemente, a época estival de descanso dos habitantes de cada microrregião corresponde também às férias dos emigrantes, de regresso temporário, quer das cidades do país onde vivem e trabalham como do estrangeiro.
Este último factor não é de desprezar, pois têm-se vindo a constituir poderosas Comissões Organizativas que envolvem consideráveis fundos, propiciando o desenvolvimento de negócios locais, acompanhado de comércio ambulante que, mais ou menos acampado, percorre os locais das festas e romarias do Continente. Casos isolados, mas não de menos atracção também turística, acontecem pelo Natal, Carnaval e Páscoa, e noutras estações do ano: como a Feira da Golegã, no dia de S. Martinho, 11 de Novembro; a Festa das Cruzes, a 22 e 23 de Maio, em Barcelos; a Festa da Padroeira, a 8 de Dezembro, em Vila Viçosa, ou ainda a Senhora dos Remédios, em Lamego; a Feira de S. Mateus, em Viseu, e o S. João, em Évora; a de S. Silvestre, a 31 de Dezembro, na Madeira, e a do Espírito Santo, no Domingo de Pentecostes, em todo o arquipélago dos Açores, com especial incidência em Ponta Delgado, na tão conceituada Festa do Senhor Santo Cristo.
As noites de Santo António e de São João são ocasião para as cidades de Lisboa e do Porto comemorarem o início do Verão 30. Estas festas, são organizadas pelas Juntas de Freguesia e pela edilidade, e têm acentuado uma intervenção crescente de diversas camadas sociais. O cariz vincadamente
democrático das festas atingiu Lisboa, no 25 de Abril, enquanto no Norte esta dimensão fora sempre mais espontânea.
A característica da porta aberta e de um vasto terreiro de participação comunitária foi aproveitada pelo Partido Comunista Português para, todos os anos, realizar a sua Festa do Avante, que ultrapassou a intenção política, passando a ser um dos acontecimentos mais concorridos na primeira semana de Setembro, com todos os ingredientes de uma Feira tradicional portuguesa.
A igreja aqui é outra e não há procissão. Mas, a doutrina passa ao lado, tal como nas outras mencionadas festas, onde se perdeu já, não sem algumas excepções, a motivação religiosa, pagã ou lendária.
A sociedade mudou e há que reconhecer o sentido das transformações. Já não existe a festa popular comunitária nem o traje popular. Tudo mudou. A ortodoxia antropológica não pode garantir a permanência de usos e costumes que, hoje, são vivenciados de uma maneira diferente. A manufactura da indumentária já é, em certa medida, industrial. Raros são os lugares onde se semeia, colhe, fia e tece o linho. Os teares manuais deixaram de ser caseiros e passaram a fazer-se em grupos de famílias ou em cooperativas. O burel é raro, e os tintos são químicos e artificiais. A reactivação do fabrico da seda em Trás-os-Montes, porém, começa a ser uma realidade. A chita estampada à mão desapareceu e tem vindo a ser substituída por algodões de estampado industrial, assim como a preferência vai hoje para a aquisição de rendas de nylon, muito mais acessíveis do que as tradicionais, executadas em linho e, mais recentemente, em algodão. Restam algumas bordadeiras que, como no caso da Madeira, se conseguem manter através do apoio e da «marca de qualidade» introduzida pela via legal e empresarial.
Há também uma nova vaga de bons artesãos que, desde a década de 60, procuraram recriar valores e peças tradicionais. São tanto urbanos como rurais.
Entre estes, contam-se numerosos jovens que, cansados de consumismo, preconizam o retorno à terra e lutam por uma vida mais humanizada. As Feiras de Artesanato, organizadas pela Feira Internacional de Lisboa, absorvem grande parte destes produtos que dificilmente atingem o mercado e os índices de produtividade desejáveis. Mas, para além do rigor analítico e da verificação empírica, é necessário saber interpretar o sentir destes artesãos para compreender porque trabalham, o que realizam e quais as técnicas e processos de fabrico. A herança cultural é rica e muito variada. A repetição e a multiplicação das formas, das cores e dos motivos decorativos são a grande tentação.
Torna-se difícil, em todos os campos culturais, inovar, fazer original, evoluir e propor novas alternativas. Há que esperar até que aconteçam sinais de uma importante renovação das artes decorativas tradicionais.
Assim, se por um lado se vive ainda, nalguns locais do País, um festivo folclore a nível nacional, padronizado pelos anos 40, por outro, estamos numa fase a que poderei chamar de neopopular, com apetência crescente para re flexões sobre a identidade nacional, regional e microcultural. O forte movimento ecologista e a consciência do vazio das ideologias, quer à esquerda, quer à direita, conduz a um caminho de introspecção que influi com bastante vigor nas opções das novas gerações. É a escolha da qualidade que se traduz numa reforma de mentalidades, a qual tem vindo a desabrochar, com consequências importantes no domínio da reinterpretação dos territórios como representativos de identidades geográficas de contornos culturais bem definidos,
pois resultam de uma sucessão de culturas com abrangências históricas seculares, vividas por povos e civilizações de raízes diversas, dos Iberos aos Celtas e aos Romanos, dos Fenícios e Gregos aos Visigodos e aos Muçulmanos.
Simbólica dos trajes regionais
Muito embora os Ocidentais tenham perdido o sentido da metafísica para atenderem somente à linguagem científica, a verdade é que os símbolos permanecem e continuam a ser transmitidos através da linguagem visual. A simbólica está contida também na essência da tecelagem, na reunião axial das fibras. O fio vertical (a teia) ao unir-se com o horizontal (a trama) forma uma cruz «et tout point du tissu, étant ainsi le point de rencontre de deux fils perpendiculaires entre eux, est par là même le centre d’une telle croix» . A teia constitui a estrutura. A trama materializa o variável e o contingente. A vertical, ou seja, a teia, representa o princípio activo ou masculino. A horizontal apresenta-se como o princípio passivo ou feminino. Desprendem-se, em corolário, todas as correlações simbólicas que advêm deste dois elementos fundamentais, quer eles se situem na ordem cósmica ou na ordem da transcendência. A cruz apela para a união dos complementares e simboliza, por isso, a estreita, necessária e fundamental reunião dos seres feminino e masculino, que constituem a base de qualquer sociedade.
Ao atendermos aos materiais com que os trajes são executados, há que observar, em primeiro lugar, os tecidos em que os trajes regionais são confeccionados, havendo a distinguir cinco espécies: os têxteis monocromáticos, os riscados e os axadrezados, os lavrados e os estampados. Qualquer destes processos passou pela fase manual. A partir, grosso modo, dos finais do século XIX, a grande maioria dos tecidos sofre a modernização que a tecnologia industrial veio trazer, quer ao tecido propriamente dito, quer à manufactura dos próprios fios. Estes últimos, executados, desde a mais remota antiguidade, em lã, linho, seda e algodão, são agora fabricados artificialmente, em consequência da Revolução Industrial. Esta acontece no nosso país no século XIX e, mais acentuadamente, em Novecentos, com a achega tecnológica dos novos produtos utilizados como matérias-primas, de que resultam as mais variadas fibras sintéticas e texturas insólitas e diferenciadas, com qualidades inusitadas, atérmicas e impermeáveis.
Aceitando a tese de Pastoureau, sobre o uso do vestuário listrado – como característica medieval de transgressão ou exclusão social do seu utilizador – deverá ter-se em conta que a dominância monocromática do traje do interior se contrapõe aos listrados e estampados do Litoral. Os principais vestígios das riscas encontram-se nas mantas, nas saias nortenhas, madeirenses e ribatejanas. Pertencem à mesma linhagem dos riscados, que se contêm no sistema das librés e no vestuário da criadagem. «Sem ser diabólica, a risca permaneceu como marca desvalorizante» .
No caso nortenho, à risca, acrescentaram-se os lavrados e bordados que dignificam o desejo de enaltecer o tecido e, consequentemente, a sua possuidora.
Os tecidos bordados implicam o uso de outra técnica, que se sobrepõe à tecelagem, e que pode ser executada no mesmo ou noutro material que serve de suporte ao bordado. Este último, constitui uma decoração do suporte que, em várias formas e feitios, em densidades maiores ou me nores, resultam numa carga ornamental. Esta aparece como portadora de uma cultura com sinais sobrepostos, exprimindo, simultaneamente, a época em que a vianense não era exaltada, e a outra, posterior no tempo, em que é enobrecida.
A carta de privilégio data do século XVIII, e é detectável na gramática tardo-barroca dos elementos decorativos que se apõem às colorações das riscas que, por sua vez, «têm puxados». A técnica dos puxados, que é uma técnica de lavrado de tecelagem, usada nas saias e nos aventais, torna o conjunto da minhota, densa e profusamente policromo.
Deverão acrescentar-se mais dois tipos de têxteis, os pisoados e os feltros.
Os primeiros, cujas técnicas de manufactura transformam os tecidos monocromáticos, tornando-os impermeáveis; os segundos, alteram o fabrico dos têxteis, pois o feltro é executado através da reunião caótica e indiscriminada de milhões de fibras de lã e pêlos de animais, nomeadamente de castor .
Surgem ainda, no contexto das vestes regionais, as executadas em pele e as que são manufacturadas em palha. A cobertura de peles, de raiz pré-histórica, permanece no traje do pastor da Serra da Estrela e nos pelicos e safões alentejanos. Ambas a indumentárias são masculinas e correspondem ao acto nómada do homem, acompanhando a transumância dos animais. Facto que, hoje em dia, continua a acontecer, através da condução dos rebanhos das planícies para as terras mais altas. Estas peças constituem as formas mais primitivas e arcaicas do traje regional, tendo as suas origens no Paleolítico.
Do Neolítico sobrevive outra forma de vestir, a coroça ou croça. Remete para a técnica do entrelaçado de palha, utilizado na cestaria. Sabe-se que a manufactura de cestos, assim como a olaria são anteriores ao conhecimento da tecelagem. A descoberta da agricultura conduziu à sedentarização e, simultaneamente, à necessidade de fazer vasilhames para guardar e conter os mais diversos produtos. Inicialmente, e antes de se conhecer o cozimento, fazia-se um invólucro de vime entrelaçado para conter o barro, o qual secava com a forma desse suporte. Esta técnica de entrançado passa a ser utilizada para cobrir o homem em saiotes e outras formas, de que a coroça deriva. Corres -ponde ao que se designa como pré-tecelagem. Também está relacionada com a cobertura das choupanas e palheiros. Mantém-se rara, hoje, na Beira Alta, nomeadamente nas serras de Montemuro e do Marão.
A tecelagem de lã prossegue no tempo e vem originar o tecido de mantas de várias funções e de mantos e capas, cuja confecção exige além da agulha e do fio, já conhecidos no Neolítico, a descoberta da faca. Este utensílio pressupõe uma elaborada e desenvolvida indústria do ferro. «Do vestuário dos Lusitanos muito pouco se conhece.» Estrabão diz apenas: «O vestuário é geralmente uma capa preta com que também dormem sobre a terra; porém, as mulheres gostam de vestidos de cores» .
No nosso país, há a referenciar as mantas de lã da Serra da Estrela e do Alentejo, relacionadas com a pastorícia. Enquanto as primeiras se mantiveram monocromáticas, as segundas, por influência muçulmana, vieram a sofrer alterações através da introdução de motivos decorativos geometrizados, ao gosto berbere, e também de riscas, que acabaram por ser incluídas nas mantas de papa da Serra da Estrela, servindo também de capotes através de uma pequena costura num dos lados. Ainda de lã, e usada fundamentalmente na serra do Caramulo, deverá referir-se a capucha, cuja configuração tem um diâmetro solar maior do que a coroça, mas é executada em burel.
Corresponde a uma fase avançada da tecelagem em tempos já históricos.
Todas estas formas monocromáticas são executadas nas cores naturais do carneiro.
Os tintos implicam uma técnica que supõe um adiantado grau de civilização.
A tintagem adquire um grande valor cultural, a partir das invasões Árabes na Península e da permanência dos mouros em Portugal, até ao século XIII. Como é sabido, os mouros abandonam oficialmente o território nacional com o decreto de D. Manuel, no início do século XVI, que os expulsa do País juntamente com os judeus. Mas, na verdade, se atentarmos, por exemplo, à permanência do uso da bioca no Algarve, esta peça só foi retirada dos hábitos quotidianos e dos costumes das mulheres da região, através de uma medida legal datada dos anos 30 do século XX.
De origem celta, existe ainda a branqueta do sargaceiro da Apúlia e o saiote do pauliteiro de Miranda do Douro. Enquanto o primeiro tem a forma de uma túnica branca e curta, a saia mirandesa, também branca, é formada por uma sobreposição de folhos que atinge o joelho do homem. Foi executada em linho, havendo quem também a relacione com o traje tradicional grego, do que discordo, pois jamais este povo fez incursões pelo interior do País, limitando-se a estabelecer feitorias no litoral. Muito embora o Douro fosse navegável até Miranda, uma hipotética subida pelo rio até àquelas paragens não justifica a presença e a manutenção, na fronteira, da secular forma deste traje regional.
Matos Sequeira refere que a invasão dos bárbaros do Norte da Europa, no princípio do século V, operou uma revolução na indumentária peninsular e gaulesa. «Serão, portanto, os Suevos e os Visigodos os introdutores do uso do calção e calças nesta parte do Sul da Europa […], que se generalizou em calça comprida com a Revolução Francesa de 1789. […] O traje popular parece ter sido apenas influenciado, mas não imediatamente, pelo que via nas classes privilegiadas, como sempre sucedeu e sucede ainda hoje» .
A utilização do linho generaliza-se com a presença romana, assim como o uso da camisa, que é envergada desde a Idade Média como peça de roupa, tanto interior como exterior, até ao século XIX. Aos Romanos deve-se ainda o uso do branco, que subsiste tanto na referida branqueta como no traje do pescador da Póvoa de Varzim. O fabrico industrial vem a permitir que os preços passem a ser módicos. Estas circunstâncias geram a possibilidade das pessoas, homens e mulheres, terem e usarem uma camisa para o dia e, outra, para a noite, razão pela qual a camisa de noite só é divulgada, entre as classes mais abastadas, em Oitocentos e, a nível regional, no século XX.
Do manto romano derivam todas as capas e capotes usados no nosso país, assim como o traje, inicialmente religioso, da Universidade de Coimbra. O hábito talar advém da toga latina usada pelos senadores. A batina dos estudantes de Teologia, longa até aos calcanhares, estendeu-se aos universitários de todos os ramos científicos. A indisciplina e a displicência no trajar, verificada no século XVIII, conduziram a que a reforma da Universidade se focalizasse também nos hábitos talares que passaram a estar regulamentados. No entanto, as calças e sobrecasaca, ainda hoje utilizadas, correspondem à adopção do traje secular masculino do princípio do século XX, sobre o qual se enverga a capa, essa sim, de raiz medieval.
Outro tipo de negrão, não universitário, está presente no do traje da mordoma do Minho. Deverá salientar-se esta utilização do negro e mais raramente do azul-escuro em sua substituição. Esta tonalidade tornou-se cor de «circunstância
» para cerimónias religiosas e para a indumentária eclesial, posteriormente ao Concílio de Trento e à consequente influência dos Jesuítas. A austeridade da corte, a moda espanhola e a Inquisição fizeram perdurar, muito para além do século XVI, a postura negra do traje, mesmo aristocrático e até real, de que Filipe II é o grande ícone. Desde finais do século XVII, a indumentária erudita masculina explode num intenso cromatismo de que se vem a soltar com a Revolução Francesa de 1789 e com a postura austera e minima lista de
Lord Brummel, Le Beau Brummel, que, no início do século XIX, faz vingar a moda da discrição e da sóbria elegância masculina do seu fraque negro.
Dos trajes regionais
A escolha e a designação de trajes regionais obedecem a critérios baseados na visualidade, ou seja, nas qualidades estéticas e poéticas da disse minada ti po logia de traje no Continente e nas Ilhas. Também foram consideradas razões de natureza social e técnica, sempre que estes factores contribuem para a compreensão e a interpretação do significado dessas mesmas roupagens.
Cada tipo de traje representa a imagem de uma cultura e tipifica, assume e sublinha, a relação de participação do homem com o seu enquadramento geocultural. São trajes de oficiantes. Explicam e integram as cerimónias de carga simbólica local e estão ligados quer a celebrações especiais quer à cadência dos dias e das estações comandadas pelo astro-rei. Foram tanto a segunda pele de uma sublimação, dissolvida no colectivo, como a de um viático vital. Ambas as situações são carismáticas, porque, tanto num caso como noutro, transcendem a ordem do real para se situarem na orla do ideal. Este ideal traduz-se na indumentária que se foi considerando e evoluindo até ficar perfeita. O traje «perfeito» é aquele que reúne todas as qualidades, conjugando a estrutura, a forma, a cor, os ornatos e os acessórios com os materiais e as técnicas, de modo a constituir o conjunto que reflecte a atitude de comunhão em cada região.
A força e o vigor na elaboração de cada um dos elementos e a sua globalidade são tão importantes como a adaptação da forma de cada traje à função que desempenha, acrescida de sinais misteriosos ou incompreensíveis para os não iniciados, mas que veiculam a expressão própria da comunidade. Este
breve ensaio de caracterização pretende ser uma análise tipológica do traje regional português, sobrelevando-se o seu valor através da explanação dos seus conteúdos, das suas estruturas e formas.
Foram consideradas as vestes que, numa determinada região, advieram invariantes, pois os trajes, tal como as histórias de carácter mitológico, parecem ser «arbitrárias, sem significado, absurdas» 36. Mas, na realidade, têm um sentido, uma ordenação dentro de grupos ou famílias de indumentárias, exaltando-se como criações únicas e originais, não sem que absorvam e mantenham algumas características estilísticas, de remotas ou mais recentes origens históricas.
Entendeu-se que a concepção destes trajes provém de uma mistura de elementos locais, de profundas e seculares raízes culturais, a que se foram justa pondo outras formas eruditas, a partir dos séculos XVII e XVIII. A Revolução Liberal é extremamente propícia à definição dos regionalismos e, a partir do segundo quartel do século XIX, os trajes regionais estão padronizados.
Existe uma forte diferenciação nos trajes portugueses, dividindo-se o País em duas grandes zonas: a litoral e a serrana, como escrevia Luís Chaves, em 1940: «As lãs dos picotes, riscadilhos, xergas ou burelas, buréis, estamenhas, saragoças, churras ou tingidas, dão tons de monótona grandeza aos trajes serranos.
À medida que se desce para a planície, a cor alegra os trajes que manifestam pouco a pouco a subida para a policromia rica. Assim, as mulheres policromizam e complicam o vestuário, quanto mais se aproximam das baixas, sobretudo quanto mais se achegam ao mar. Aí os matizes são perfeitos,
vivos no colorido e movimentados no jogo dos tons. A mulher da zona litoral é a mais colorida e a de maior composição na indumentária. E, de entre todas, a mais rica é a do recanto do Noroeste, na região de Viana do
Cas telo. Esta graduação do traje, das alturas para as baixas e do interior para a orla marítima, condiz com as outras manifestações espirituais e utilitárias do homem na mesma direcção» . Idêntica situação se gera no traje insular da Madeira e dos Açores, cujas vestes se dividem entre a policromia e a monocromia, entre a explosão de alegria e o sentido da interioridade.
A divisão geográfica acima citada, entre a orla marítima e a zona montanhosa, traduz-se também na forma do uso do lenço da mulher. No eixo interior Norte e Centro, a testa é tapada, o que significa a diminuição do papel da mulher nas decisões da comunidade transmontana e beiroa. No Sul e em
todo o litoral, o lenço, embora atado de formas variadas, liberta a testa, sinalizando um papel mais activo da mulher e a aceitação do seu modo de ser, pensar e sentir. No Minho, depois de uma volta na nuca, o lenço é atado no alto da cabeça, coroando o topo, à guisa de figura real; isto é, indica uma afirmação e desenvoltura rara e única em território nacional, pois aqui prevalece o feminino sobre o masculino.
Outra situação única acontece na Madeira, onde ambos os sexos usam a carapuça com espigão, alteando a cabeça, que fica bem erguida para o céu. A configuração deste chapéu pode representar a ilha dirigida ao Sol e, simultaneamente, a calote esférica, a Terra, dividida em quatro gomos, onde no centro se implanta a vertical que a liga ao Cosmos. Qualquer destas simbologias é analisável nos formatos dos chapéus, cujo desenho convexo, obrigado pelo côncavo da cabeça, é, frequentemente subvertido e alterado, para impor diversas composições com os seus correspondentes significados.
Simbólica e características
Relativamente ao traje regional português, podem ser desde logo detectados cinco grandes factores componentes do variado conjunto que o constituem.
A representação do afecto
A linguagem amorosa foi veiculada com muita frequência, constituindo uma constante que se repete de diversas formas, no modo de trajar, de usar o lenço e nos próprios motivos decorativos das camisas dos homens do Minho, habitualmente dos noivos. Apresentam dois pequenos corações bordados a vermelho e são um exemplo deste facto, tal como os chamados lenços de namorados. Com efeito, os versos que se encontram bordados no entorno dos lenços de amor constituem um interessante e diversificado manancial de poesias populares, geralmente escritas em quadras de grafia saborosa.
A algibeira da minhota é a peça mais obviamente sexuada, no contexto do traje regional português. A perfeita geometrização da curva e da contracurva em que se configura esta algibeira, constitui uma representação idealizada da mulher que se repete no interior da algibeira onde a sua forma se abre na horizontal. Toda esta concepção raia a criação de um acessório de luxo, tal a profusão do bordado e da decoração e, com frequência, da assinalada legenda AMOR. O desenho mais ou menos estilizado do coração e do próprio corpo da mulher são ícones do sentimento lírico que se reconhecem noutros adereços e bordados. Esta simbólica detecta-se ainda dependurada no cordão ou nos fios de ouro, em grandes, médios e pequenos formatos. A famosa borboleta não é mais que um coração virado ao contrário, e que é uma alusão ao amor.
Tudo e todos têm como centro as emoções ditadas pelos sentimentos e pelo afecto. E, quando ele falta, o luto é pesado, permanente e dramático. As mulheres da Nazaré, e todas as outras de diversas regiões que se mostram embuçadas ou embiocadas nas suas capas, são a imagem desta realidade que perdurou até quase meados do século XX. Segundo Maria Bello, a mulher portuguesa gerou e educou sozinha os filhos ao longo da sua secular história, porque o homem partia à conquista do seu território, na luta contra os infiéis, para a pesca, o bacalhau, as Índias, as Áfricas, os Brasis, as Franças e as Ale manhas… A dureza da vida e do sobreviver constituía um destino inevitável, pelo que o factor de autoridade e de responsabilidade familiar e patrimonial teve as consequências visuais no modo de trajar em que o luto esteve sempre muito presente. Este facto pode ser generalizado à mulher me diterrânica, desde a mamma romana, italiana e siciliana, à mère francesa, à madre espanhola e à mãe portuguesa.
O folclore
Sendo o estudo do folclore uma inovação oitocentista alemã, o trabalho de campo desta realidade e a respectiva pesquisa científica veio a tomar corpo em Novecentos, na disciplina de Antropologia Social, na Etnologia e nas etnografias de diferentes grupos e geografias. No nosso país, muito embora Gil Vicente se tenha debruçado sobre a descrição da sociedade do seu tem po, é no romantismo, com Alexandre Herculano e Almeida Garrett, que se iniciam os estudos sobre a cultura popular. Leite de Vasconcelos aborda estes as pectos de um ponto de vista da História do Homem, realizando estudos comparados sobre a Arqueologia e a Etnologia, vindo este último ramo do conhecimento a autonomizar-se como uma vertente fundamental da in vestigação das sociedades rurais. O folclore teve a sua década de ouro nos anos 1940, com a exposição do Mundo Português, tendo como orientador o po lítico António Ferro e a sua mulher, a poetisa Fernanda de Castro. Este casal e alguns dos seus amigos criaram um grupo de opinião e de acção que, em torno do SNI (Secretariado Nacional de Informação), multiplicaram acções de recolha, registo, inventariação, exposição e divulgação de diversos elementos e manifestações culturais, consideradas como caracterizadamente portugue sas, desde a arquitectura, às artes decorativas, às danças e cantares tradicio nais e às mais diversas artes populares, em que o artesanato era parte integrante.
Toda esta acção veio a ser contestada pelos etnólogos, que consideraram aquela via de exploração como «poética e sem rigor científico». Todavia, não pode deixar de se mencionar Tomaz Ribas, que se dedicou sobretudo à qualificação dos ranchos folclóricos. A sua formação em dança contribuiu de forma inequívoca para fixar as tipologias de danças e bailados, para separar modos, técnicas, posturas e gestualidades locais, e para definir critérios de avaliação e de desempenho próprias a cada grupo e a cada região. Esta acção pedagógica foi exercida de uma forma pragmática e, mais raramente, em estudos teóricos que só vieram a ser publicados postumamente. Nesta sua acção de sistematização de conceitos e de boas práticas no domínio das actuações dos ranchos folclóricos, o traje constituiu um elemento que Tomaz Ribas sempre valorizou.
A crítica a este modo de agir, que se desenhou nalgumas Universidades estrangeiras, de que a Sorbonne foi pioneira, veio alertar os estudiosos e os museólogos para uma outra realidade. Na verdade, muitas das pretensas «tradições» não teriam mais que um século, quando, por vezes, personalidades de destaque do grupo dos anos 40, afirmavam a secular permanência das mesmas. Livros como A Invenção das Tradições, patentearam uma realidade indiscutível e trouxeram a lume casos paradigmáticos.
A colecção de trajes de alguns ranchos folclóricos, do grupo de dança Verde Gaio e ainda parte do guarda-roupa da Mocidade Portuguesa, veio a ser integrado nas colecções do Museu Nacional do Traje, com escândalo por parte de alguns etnólogos que se ressentiram da pouca autenticidade destas peças.
Em sequência ainda desta acção de depuração das colecções e do rigor científico da Etnologia, o Museu de Arte Popular foi encerrado em 2007, cabendo actualmente ao Museu de Etnologia as funções que então estavam adstritas ao museu dos anos 40. E… moda é moda. O tempo passa e as mentalidades, assim como as sociedades mudam, recuam, progridem e desenvolvem-se, vindo a ocorrer e a revelar-se de modos e com facetas muitas vezes antagónicas às que o progresso indicava como as mais «perfeitas».
Hoje em dia, tanto no País como nas comunidades emigrantes espalhadas pelo mundo, os Portugueses apreciam, apelam, desejam, encomendam e identificam-se de tal modo com os pequenos, médios ou grandes testemunhos
da sua herança cultural, que investem financeiramente largas e, por vezes, muito expressivas, quantias de dinheiro, ao exigir a recuperação, o restauro, a execução de réplicas e o ressurgimento de processos artesanais arcaicos, de modo a tornar sua memória mais dinâmica, mais visível e palpável.
De algum modo, esta atitude é contrária ao espírito científico, mas o florescimento de muitas actividades extintas contribui para o estudo e a aprendizagem de técnicas e processos esquecidos no tempo. Por outro lado, vem revelar às gerações seguintes os modos de ser, de estar, de fazer e de sentir dos seus ancestrais, conduzindo à permanência da identidade portuguesa nos diferentes continentes.
dade das tradições do passado, a exaltação dos costumes, das gastronomias, dos cantares, dos trajes, das culturas e das microculturas locais, num momento histórico que se vive como global.
JOSE VIDAL