CINTRASEUPOVO

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Estéticas e políticas do folclore

O termo «folclore» tanto é usado entre nós enquanto sinónimo aproximado de «cultura popular» como serve para designar o estudo ou ainda a figuração dessa cultura. É do folclore neste último sentido que falarei. Refiro-me, mais especificamente, ao folclore dos ranchos folclóricos, dos desfiles de trajes tradicionais e de outras mostras performativas e museográficas de âmbito local ou regional. Seguindo Richard Handler, considero que «a engrenagem da exibição das danças folclóricas é tão cultural como as danças que se exibem» e que, na medida em que «ambas são cultura, cultura moderna, são ambas passíveis de análise antropológica» (Handler, 1993, pp. 67-68). Para ser mais preciso, a abordagem que aqui ensaio tem como ponto de partida um entendimento do folclore enquanto objecto definidor de um campo social, no sentido que Pierre Bourdieu conferiu à noção. Afunilando ainda mais esta opção analítica, foco a atenção ao nível dos discursos sobre o folclore em curso dentro do campo. Nos discursos em torno do folclore português, desde a sua génese, nos anos 30, até ao presente, julgo encontrar uma polarização entre duas formas de concebê-lo — entre um paradigma da reconstituição, que faz do folclore representação tão fiel quanto possível dos costumes de outrora, e um paradigma da estilização, que faz do folclore um objecto em si que circula num mercado próprio e cujas propriedades devem ser condicionadas por essa inserção. Estes dois paradigmas constituem desenvolvimentos extremos de uma tensão inerente à própria figuração folclórica e, nessa medida, ambos orientam programas de acção limitados pelas características objectivas do fenómeno em jogo. Procurarei demonstrar que ambos os discursos são instrumentais nas disputas entre grupos e facções em concorrência no interior do campo e que, ao nível dos centros disciplinares, a transição de um para o outro foi propiciada por mudanças sociais ocorridas no interior e no exterior do campo após o 25 de Abril de 1974. Darei ainda conta da circulação recente de um «discurso sociológico» sobre o folclore, que o articula com noções como «cultura local», «identidade local» e «memória colectiva». Este discurso materializa-se de forma particularmente elaborada em textos cujos autores combinam uma posição influente em arenas do campo do folclore e das políticas culturais de âmbito local ou regional com uma formação académica na área das ciências sociais. Mas as suas categorias elementares circulam num espaço bem mais amplo, sintoma da «sociologização» contemporânea do senso comum. Algumas relações entre este discurso e o das ciências sociais serão objecto de comentário no final do percurso que aqui se traça. Uma última observação preliminar. Neste texto concentro-me essencialmente nos promotores do folclore e nas suas palavras — nos folcloristas «teóricos» em detrimento dos «práticos», para usar uma dicotomia corrente no interior do campo. Por contemplar ficam vários outros intervenientes no mercado do folclore: boa parte dos «actores» (isto é, os tocadores, cantadores e dançadores dos ranchos), os intermediários (organizadores de festas e romarias, industriais do turismo, etc.) e os consumidores. Observar-se-á que as expectativas e as competências dos primeiros e dos últimos são frequentemente dadas por adquiridas nos discursos que aqui se visitam. Está, porém, fora do âmbito deste texto aferir a justeza dessas alegações. Esse é um dos motivos pelos quais, nas páginas que se seguem, não se achará mais do que uma aproximação àquilo que poderia ser um esboço de um retrato do campo do folclore. Um tal retrato só se cumprirá com o rigor necessário mediante uma investigação sistemática que contemple todos os intervenientes e que explore também, muito para além das sugestões que aqui se fazem, as articulações entre as respectivas posições dentro do campo e as que ocupam noutras arenas de interacção. os leigos tendem a ignorar ou a amalgamar coisas que os jogos de poder no interior dos campos respectivos tratam de distinguir. A este primeiro índice, negativo, da existência de um campo folclórico podemos acrescentar outras observações mais transparentes: Há em Portugal mais de 2000 associações culturais e recreativas de base local e regional que usam o adjectivo «folclórico» ou outros termos semanticamente aparentados para se designarem a si próprias2. A maioria destes grupos dedica-se exclusivamente à figuração espectacular de danças e/ou cantares tradicionais, embora alguns trabalhem num domínio mais amplo do registo «etnográfico». Além dos cerca de trezentos ranchos folclóricos enquadrados na Federação do Folclore Português, contam-se centenas de outras agremiações espalhadas por todo o país. Trata-se de grupos constituídos por amadores — pessoas que amam o folclore mas que tiram o seu sustento de outras actividades. Centram- -se com frequência na figura de um líder carismático e são, em geral, nula ou incipientemente burocratizados — muitos deles não possuem sequer existência jurídica . Existe um mercado bem estabelecido de exibição e de consumo do folclore. Trata-se de um mercado dinamizado por mediadores, como as comissões organizadoras de festas locais e de romarias, editoras discográficas, agentes de turismo e da indústria hoteleira e políticos locais. Ao mesmo tempo que se abastecem do folclore para capitalizarem ganhos em esferas diversas da vida social — da esfera económica à das políticas comunitárias —, aqueles agentes abastecem os agrupamentos folclóricos dos públicos e do capital de que estes carecem para se manterem em funcionamento. Além destes mediadores, existem instituições oficiais de âmbito municipal, regional e nacional que estimulam e patrocinam o trabalho dos ranchos, seja através de aconselhamento técnico, seja por via da atribuição de apoios logísticos e financeiros, seja ainda mediante a organização de festivais e colóquios. Refiro-me especialmente ao Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores (INATEL), às regiões de turismo e também a muitas câmaras municipais. Existem manifestações culturais exclusivamente dedicadas à exibição e ao consumo do folclore, como os festivais de folclore e os cortejos etnográficos. Existem redes formais e informais de contacto entre ranchos, nas quais se desenvolvem relações de reciprocidade e de antagonismo. Havendo boas relações entre os grupos, através dessas redes circulam, por exemplo, não só convites para actuações públicas, para colaborações em empreendimentos conjuntos, como também tocadores — um dos bens mais requisitados neste mercado. Finalmente, existe desde há mais de duas décadas uma organização federativa que tem como objectivo expresso — como principal razão de ser, acrescentaria — alcançar o monopólio da autoridade disciplinar sobre os agrupamentos folclóricos nacionais. Refiro-me à Federação do Folclore Português. MONOPÓLIOS DA DISCIPLINA Quero focar a atenção neste último ponto. A Federação do Folclore Português foi criada em 1977, três anos após o 25 de Abril. O campo do folclore formara-se no nosso país durante o Estado Novo . Através de organismos como a Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, a Junta Central das Casas do Povo e o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, o Estado Novo fomentou a multiplicação de agrupamentos folclóricos locais, ao mesmo tempo que procurou exercer uma supervisão zelosa sobre o funcionamento interno dos mesmos, cobrindo desde os assuntos institucionais até aos conteúdos coreográficos. O investimento do Estado Novo no folclore fez parte do trabalho de redução do «popular» ao «camponês» e de decantação e elogio da tradição e da rusticidade que caracterizou a retórica nacionalista hegemónica neste período5. A esteticização do folclore nos palcos articulou-se, por um lado, com medidas práticas de disciplinamento estatal e eclesiástico dos costumes do campesinato, mormente de alguns dos seus hábitos festivos (cf. Sanchis, 1983). Por outro lado, o pendor «visualista» e espectacular do folclorismo fomentado pelo Estado Novo subalternizou trabalhos de pesquisa etnográfica cuja eficácia social imediata se afigurava menor ou potencialmente corrosiva dos cânones da retórica nacionalista . Em concreto, tenho em mente as pesquisas que Fernando Lopes Graça e Michel Giacometti empreenderam naquele período (cf. Ferrão, 1996). A criação da Federação do Folclore Português ocorreu, ficou dito, na sequência da dissolução do Estado Novo. Nos mais diversos campos da sociedade portuguesa, o fim do autoritarismo de Estado permitiu a multiplicação, a concorrência e a autonomização de poderes. No domínio do folclore, a instituição de uma federação nacional havia sido defendida desde 1959 por vários daqueles que viriam a dirigi-la, mas fora sempre protelada pelos organismos oficiais (cf. Sousa, 1996, p. 19, nota 7). Finalmente, criada em 1977, a Federação intentou preencher o vazio deixado pela derrocada do monopólio estatal do disciplinamento desta actividade, substituindo-o por um monopólio de especialistas desvinculados do aparelho de Estado . Para fundamentar esta afirmação, leiam-se, por exemplo, os argumentos que Manuel Chaves e Castro desenvolveu num texto publicado nas actas do primeiro congresso da Federação. Depois de aludir à manipulação ideológica do folclore no Estado Novo, o autor escreve o seguinte: Na democracia em que vivemos, pela maneira de ser da maioria do povo português, está provado não ser desejável em Portugal qualquer tipo de dirigismo estatal do folclore. Deseja-se que sejam mantidas com pureza e verdade as tradições autênticas. Deseja-se e exige-se que essa acção se desenrole através do povo ou dos organismos para o efeito seus representantes de pleno direito. No caso das danças, cantares, trajos e tocatas, apenas a Federação do Folclore Português pode e deve actuar. É do povo, é séria como ele próprio, que a enforma, é apolítica, é capaz nos sistemas de trabalho e consciente nos objectivos a atingir. O povo será o seu vigilante e o seu juiz [Castro, 1979a, p. 20, itálico meu]. Notar-se-á neste trecho a recorrência de um uso retórico do «povo» muito difundido no período pós-revolucionário, não só no movimento folclorístico, mas em variados sectores da sociedade portuguesa. Os contornos da separação entre o Estado e a Federação que Castro advoga na passagem citada são depois esmiuçados pelo autor na seguinte agenda para uma concordata: o Estado deve legislar para que «as regras com vista à dignificação das manifestações folclóricas» sugeridas pela Federação sejam cumpridas; deve fornecer meios à Federação, mas nunca competir com ela em «acções paralelas»; não lhe ficará mal, por exemplo, «possuir arquivos completos sobre folclore», contanto que a organização dos mesmos se faça sempre em «ligação fraterna com a Federação»; nunca deverá, seja centralmente, seja através das autarquias locais, substituir-se à Federação na «avaliação da pureza dos grupos ou conjuntos, dos cantares, dos trajos ou das músicas» (Castro, 1979a, p. 20). À Federação, em suma, competirá disciplinar o folclore nacional. O Estado deverá limitar-se a reconhecer a utilidade social e a autoridade daquele organismo e a apoiá-lo institucional e financeiramente. Ao insistir na vontade disciplinadora da Federação como alicerce primeiro da sua existência não faço mais do que reproduzir o conteúdo explícito dos textos programáticos publicados pelos seus fundadores. O artigo de Manuel Castro que venho citando intitula-se, precisamente, «A disciplina no folclore». «Disciplina», esclarece o autor, «significa instrução e educação; observância de preceitos; submissão a um regulamento; ensino; doutrina» (1979a, p. 19). E como justificar a exigência de uma autoridade doutrinária e regulamentadora no mundo do folclore nacional? Castro ensaia uma resposta através da seguinte parábola: A força da electricidade obtém resultados maravilhosos, mas para isso deve ser controlada, conduzida através de cabos e fios, passando por centrais transformadoras, sujeitando-se a interruptores. Todas essas acções terão de ser executadas por especialistas, pois, quando os leigos tentam intrometer-se, arriscam-se a ficar queimados e a queimar os locais onde estejam, a destruir as próprias fontes de energia ou, no menos, a desperdiçar uma preciosa parte dessa mesma energia. Também o Folclore é uma «força» que necessita de ser conduzida e controlada com cautela e saber, por especialistas apenas, e nunca por «artesãos» na matéria, sofisticados ou ingénuos, arrogantes de conhecimentos teóricos ou manipulados por ditames de origem controversa, encapotados ou não Facilmente se transplantaria esta justificação da necessidade de um monopólio do saber folclórico para diferentes campos sociais, bastando para tal substituir apenas, no segundo parágrafo, «o Folclore» por outras «forças», como «a graça divina», «o conhecimento científico» ou «o tratamento das doenças». Se a urgência em desestatizar o controle do folclore ficara justificada pela propensão instrumentalizadora do poder político central de que o Estado Novo havia dado prova, a necessidade de manter, ainda assim, uma autoridade disciplinar fica justificada pela presumida incompetência dos leigos. Porém, como ilustrarei adiante, nem todos os «leigos» reconhecem a pretensão hegemónica da Federação, e por isso ela não passa de uma aspiração. O programa disciplinar assumido pela Federação do Folclore Português pretende marcar uma ruptura com a ortodoxia anterior. Ao paradigma da estilização assumido por muitos folcloristas centrais durante o Estado Novo, mesmo quando encarado como um «mal necessário», vem a Federação contrapor um paradigma da reconstituição como cânone disciplinar. As palavras de ordem são agora rigor, genuinidade, autenticidade. O objectivo de um rancho deve consistir em alcançar o máximo de similitude entre a representação folclórica e o seu remoto original: [...] um grupo folclórico deve constituir-se com o louvável propósito de representar com a autenticidade possível a realidade social, económica e cultural da sua região numa determinada época [Mendes, 1990, pp. 66]. O componente de um grupo folclórico que quer dar a conhecer os usos e costumes de meios rurais ou piscatórios terá e deverá, por consideração pelas gentes que representa e por respeito a si próprio, ser fiel espelho dos seus ancestrais [Castro, 1979b, p. 6]. Para que o folclore consiga espelhar o passado, o autor do último trecho citado especifica um conjunto de medidas concretas: que se usem apenas os trajes que «ultrapassam ou igualam a centena de anos»12; que para esse efeito se pesquise o património das «famílias da região», ou, em alternativa, se utilizem «as descrições verbais dos mais velhos» ou suportes iconográficos coevos como a fotografia, o desenho, a pintura, a gravura e a escultura; que os ranchos não enverguem trajes absolutamente iguais13, tendo ao mesmo tempo o cuidado de não misturar num mesmo figurino peças típicas de grupos sociais e ocupacionais distintos e de não insistir em demasia nos fatos de cerimónia; que se atente na congruência entre os acessórios (calçado, calças interiores, chapéus, relógios de pulso, brincos e colares) e o demais vestuário; finalmente, que as raparigas e os rapazes cuidem da relativa ancestralidade do seu aspecto físico, não abusando elas «das pinturas do rosto, das pestanas postiças ou das sombras em volta dos olhos que sem isso seriam até mais formosos» e evitando eles o «uso de cabelos compridos, imitando os componentes dos ruidosos conjuntos de música pop» (Castro, 1979b, pp. 5-6)14. Como esta última observação deixa entrever, concomitante com a defesa da reconstituição, verifica-se um investimento na diferenciação entre o «folclórico» e o «popular», entre um «popular folclórico» e um «popular não folclórico». Se atendêssemos apenas em abstracto à familiaridade semântica dos vocábulos em jogo, concluiríamos estarmos perante um exercício paradoxal. Na prática, porém, este exercício é uma variante do trabalho de diferenciação entre um «popular positivo» e um «popular negativo» que, de acordo com Bourdieu, ocorre frequentemente em múltiplos campos sociais: Se o «popular» negativo, isto é «vulgar», se define [...] antes de tudo como o conjunto dos bens ou dos serviços culturais que representam obstáculos à imposição de legitimidade através da qual os profissionais visam produzir o mercado (tanto quanto conquistá-lo) criando a necessidade dos seus próprios produtos, o «popular» positivo (por exemplo, a pintura naïve ou a música folk) é produto de uma inversão de sinal que alguns peritos, a maioria das vezes dominados no campo dos especialistas (e provenientes de regiões dominadas do espaço social), operam num esforço de reabilitação que é inseparável da busca do seu próprio enobrecimento [Bourdieu, 1987, p. 179]. A ironia desta diferenciação no campo do folclore reside no facto de, num certo sentido, o «popular positivo» ser uma categoria inerente à existência do campo: ela jamais poderia estar ausente dos discursos produzidos pelos intervenientes num mercado que tem como produto distintivo os costumes tradicionais do povo. Uma especificidade deste campo — uma especificidade que aparentemente desafia a regra geral exposta por Bourdieu — está precisamente na circunstância de nele a afirmação de um popular positivo não ser assumida apenas por alguns especialistas empenhados na sua reabilitação e no enobrecimento pessoal, mas constituir antes o projecto aglutinador de todos os intervenientes. Mas, se tomarmos em conta o espaço social envolvente, podemos observar que isso acontece na exacta medida em que o campo do folclore é, no seu todo e para lá dos mecanismos internos de distinção, um campo periférico no conjunto dos campos de produção cultural . Embora o campo do folclore possa ser entendido, no seu conjunto e em sentido lato, como um mercado de valorização positiva do «popular», não deixa de ser verdade que essa valorização é selectiva: ela realiza-se mediante a demarcação do domínio do «folclórico» face ao domínio do «popular» e também mediante a condenação das hibridações que essa demarcação produz. Na medida em que os especialistas o são na medida em que façam crer que possuem um conhecimento distinto, eles estão forçados a censurar quer a popularização do folclore (a constituição de ranchos folclóricos por indivíduos que ignoram os cânones da reconstituição, seja por não os conhecerem, seja por não lhes reconhecerem valor canónico), quer a folclorização do popular [por exemplo, o uso na figuração folclórica de pinturas no rosto, pestanas postiças e cabelos compridos, de que falava Castro, ou a inclusão de instrumentos de sopro feitos de plástico nas tocatas, que Gomes dos Santos (1990) deplora]. Como constatava há já mais de trinta anos o folclorista Renato Almeida, dissertando sobre as relações entre «música folclórica » e «música popular», «a dificuldade, na distinção dessas duas feições musicais, está mais no definir do que no conhecer» (1963, p. 129, itálico meu). Esta franca constatação põe em evidência que a definição do folclore tem sido menos uma questão de descobrir uma familiaridade objectiva (musicológica ou sociológica) entre modos de expressão musical do que um exercício permanente de circunscrição do «genuinamente popular» face àquilo que se vai popularizando. O domínio do folclore mostra-se por isso avesso a qualquer definição definitiva. Quero, enfim, sugerir que a mudança de paradigma não é gratuita ao nível do seu conteúdo, não ocorre no vácuo. Ela representa uma rejeição da política cultural do Estado Novo que a democracia veio possibilitar e mesmo estimular. Ela parece também dever muito à transição de uma elite de folcloristas que não dependiam inteiramente do folclore para o seu reconhecimento social, para uma elite cujo investimento existencial no campo é mais forte. Nessa medida, a mudança paradigmática será um sintoma da própria autonomização do campo. Sublinho que esta sugestão necessita de ser testada — e porventura matizada — mediante uma análise minuciosa dos percursos biográficos dos principais impulsionadores do folclore nos períodos anterior e posterior ao 25 de Abril. Por último, é imprescindível observar que, tendo sido a Federação do Folclore Português o principal agente inicial da mudança de paradigma, esse protagonismo não lhe pertence em exclusivo. Folcloristas descomprometidos com aquele organismo têm igualmente batalhado pela elevação das figurações folclóricas mediante uma articulação das mesmas com recolhas etnográficas locais. Alguns assumem-se como críticos da Federação, não tanto por discordâncias de fundo quanto ao discurso dos líderes federativos, mas por observarem discrepâncias entre esse discurso e a sua concretização, nomeadamente ao nível das práticas de inclusão e exclusão dos ranchos e ao nível da acessibilidade e da qualidade do aconselhamento técnico que a Federação coloca à disposição dos mesmos. Estéticas e políticas do folclore Nos primeiros tempos do Rancho [isto é, em meados dos anos 50], as danças não tinham a organização que têm hoje, ainda se assemelhavam muito à prática do dia a dia. Os bailadores iam para o palco à luz daquilo que se fazia nos serões. Dantes as pessoas dançavam sem saberem que estavam a dançar — estavam a namorar e dançavam. A dança estava-lhes no corpo. Não era tudo certinho como hoje. Se hoje dançássemos assim, levávamos uma assobiadela [...] A desorganização é o natural do folclore. Por isso o folclore é uma contradição. A espectacularização das danças folclóricas transformou-as em algo diferente do que eram quando «as pessoas dançavam sem saberem que estavam a dançar» e por isso a demanda de autenticidade no palco é uma utopia condenada a gorar-se. O director artístico do Rancho de Dem é criticado pelos apologistas da reconstituição folclórica, que focam a sua reprovação em três opções coreográficas: o ritmo demasiado «ligeiro» que ele imprime às danças, a elevação excessiva dos braços dos bailadores e a compressão de técnicas de dança distintas numa mesma composição. Conhecedor destas críticas, Desidério Afonso tem justificação para todas elas. Em relação ao ritmo, considera que não existe propriamente uma regra, que tudo depende da personalidade dos dançadores. Além de corresponder ao seu estilo pessoal, o tempo ligeiro confere às danças uma vivacidade que, segundo ele, é muito apreciada pelo público do folclore: «O público em geral, mesmo nas aldeias, já não se reconhece no seu folclore. Há uma ou outra excepção lá no cimo da serra. Mas, em geral, prefere um ritmo rápido e o tecnicamente perfeito ao genuíno.» Quanto à postura dos braços, argumenta que aquela que ensina foi a que aprendeu junto de Pedro Homem de Mello: «Eles dançavam com os braços para baixo, e o Pedro Homem de Mello dizia que o dançarino do Alto Minho tem que dançar com os braços para cima .» Finalmente, no que diz respeito à aglutinação de técnicas de dança que originalmente pertenciam a temas distintos, Desidério Afonso justifica-as como necessárias face às actuais «exigências do público» e dos circuitos de exibição: Hoje em dia não podemos dançar mais de seis ou sete danças num espectáculo ou num festival, as pessoas aborrecem-se. Por isso diminuímos o número de danças que ensaiamos e incorporámos em algumas técnicas de outras que ficaram de fora. Poderíamos ter escolhido conservar um repertório de vinte danças e ir rodando... Mas isso exigiria muito tempo de ensaios, e a maioria das pessoas trabalha. É isto que leva à condensação de danças: dançamos a Velha mas, como não queremos perder o Malhão, introduzimos algumas técnicas do Malhão na Velha. O destaque que até aqui venho dando à reflexão em torno da figuração folclórica decorre da importância que o tema assume na literatura sobre folclore, nas comunicações apresentadas em colóquios da área, nas pequenas polémicas entre ranchos vizinhos. Ela fornece, por outras palavras, o idioma para a diferenciação e para a concorrência no interior deste campo social. Mas a actividade dos agrupamentos folclóricos e a matéria dos discursos que a vão problematizando ou disciplinando não se esgotam na figuração. Por exemplo, a ênfase que a orientação disciplinar hoje dominante coloca nas recolhas etnográficas, apresentadas como garantia de uma figuração séria e não «folclorística», tem incentivado muitos ranchos a empreenderem algum trabalho nesse domínio. Por vezes, as recolhas transcendem o propósito de auxiliar a figuração de danças, cantares e indumentárias tradicionais, conduzindo à constituição de pequenos museus etnográficos. Mesmo os grupos que não enveredam por este caminho — que são seguramente ainda a maioria — desempenham um conjunto de funções que podem até certo ponto ser separadas da figuração. Em conversas trocadas com elementos de ranchos — sobretudo não se tratando de dirigentes, pessoas cujo investimento existencial no campo tende a ser menos intenso, portanto — têm- -me sido apontadas razões diversas para o ingresso ou para a permanência nesses agrupamentos: o rancho enquadra e permite desenvolver o gosto pela execução musical, pelo canto e pela dança; proporciona um espaço local de convivialidade intergeracional e juvenil que de algum modo contraria a dispersão sócio-cultural estimulada por factores como a escolarização diferenciada e a diversificação da oferta de destinos laborais e de estilos de vida; constitui uma arena de aproximação entre rapazes e raparigas aceite pelas respectivas famílias; abre oportunidades de viajar gratuitamente pelo país e ao estrangeiro. É seguramente empobrecedor reduzir a génese das práticas às justificações verbalizadas pelos sujeitos, tanto mais que as perguntas («por que é que estás no rancho?») criam respostas, assim como os inquéritos produzem opiniões. Mas, ao mesmo tempo, é exagerado pretender que as justificações discursivas nada têm a ver com a motivação das práticas. Aposto então que as razões que sumariei recobrem uma parte do quadro motivacional que anima os membros dos ranchos folclóricos. Se esta hipótese estiver correcta, convirá aprofundar uma abordagem comparada do folclore no contexto do associativismo de base local que permita circunscrever melhor a sua especificidade a esse nível, tarefa que ultrapassa os objectivos deste texto. O trabalho etnográfico, para lá da investigação das formas sociais do passado, pode afirmar-se como um trabalho sobre a consciência colectiva do tempo, isto é, sobre o modo como as pessoas pensam o tempo. Pelas suas exibições e exposições, e não só, os grupos podem ajudar à tomada de consciência de que o hoje é diferente do ontem e que os comportamentos de hoje não podem copiar os de ontem. Talvez então o trabalho dos grupos folclóricos e etnográficos tenha que se alargar. Uma exposição sobre alfaias agrícolas caídas em desuso talvez deva ser complementada com um filme cujo enredo reconstitua esse tempo «perdido» e com um debate sobre os actuais problemas da agricultura e ainda um documentário sobre agricultura industrial e talvez ainda uma visita de estudo a estufas e fábricas que [...] Tudo isto e muito mais constitui e valoriza o produto turisticamente vendável, quer no turismo interno, quer no externo, e contribui para que o desenvolvimento turístico não se faça à custa daqueles que deveriam ser os seus primeiros beneficiados: a população local [Jana, 1990, pp. 94-95]. Citei em extensão este texto porque me parece que, não obstante a sua originalidade, ele revela um conjunto de preocupações cada vez mais frequentes na literatura recente sobre o folclore e nos debates em congressos da área31. Trata-se, resumidamente, de uma vontade de conciliar o folclore enquanto mercadoria para consumo local ou turístico — tal como ficou formatado na fase de formação do campo — com o folclore enquanto instrumento ou pretexto de comemoração da localidade e de reflexão sobre a identidade local. Afinando pelo mesmo diapasão, Henrique Rabaço, do Departamento de Etnografia e Folclore do INATEL, falava recentemente do «património etnológico» das localidades e regiões periféricas como fonte de «vantagens competitivas» no panorama contemporâneo de «globalização económica» e de crescimento das indústrias do turismo; e nesse sentido defendia o «reforço da identidade local face aos modelos globais homogeneizados» como via para o «desenvolvimento local» susceptível de envolver a actividade dos ranchos folclóricos. A ironia, como antropólogos e sociólogos têm notado, é que o «reforço da identidade local» é precisamente um dos modelos culturais globais mais «homogeneizados». Como escreve Richard Handler, «like a row of ethnic restaurants in any North American city [...] nations and ethnic groups participate in a common market to produce differences that make them all the same» [1988, p. 195]. O investimento dos ranchos na produção de diferença entre localidades é realizado dentro de um idioma — o «folclore» — que, a um nível mais amplo do espaço social, as assemelha a todas. A adesão a esse idioma é em parte resultado de um longo processo de dominação simbólica que povoou o «mundo rural» de representações arcaizantes provenientes dos centros políticos e intelectuais. E falo em «dominação», e não em imposição, porque o sucesso e a persistência do «folclore» nesse mundo indiciam que ele recobre, em parte pelo menos, uma gama de experiências estéticas e sensoriais que recebem localmente uma adesão e uma valorização positivas. Por outro lado, se o folclore pode constituir de diversas formas um capital para as localidades periféricas (como raiz de «segurança ontológica» , como fonte de promoção e de receitas através do turismo), ele tende a constituir também um limite da representação de si que elas podem produzir. Sintoma disso, pelo menos na zona do país que estudei com mais pormenor, é o facto de boa parte das associações culturais locais serem agrupamentos de cariz folclórico ou etnográfico. O folclore, noutras palavras, impõe-se com especial força enquanto campo de investimento existencial, ou de socialização da líbido, nas áreas mais «regionalizadas» pela geografia sócio-política do país. Como contraponto a este estado de coisas, o parágrafo final do texto de José Eduardo Jana que citei — um texto mais programático do que analítico, repito — indica que um caminho para a renovação do folclore, e se calhar para a sua transformação noutra coisa, pode passar pela substituição da comemoração nostálgica de um passado longínquo por um investimento em trabalhos mais aprofundados em torno da historicidade da cultura local e em reflexões sobre o futuro. A proliferação recente de jovens formados em ciências sociais nas associações folclóricas poderá contribuir para um tal corte paradigmático dentro do campo — ou para mais uma fractura. No panorama presente, então, os jovens dirigentes, pensadores e fazedores do folclore encontram-se perante o desafio difícil, mas estimulante, de articular a vontade de promover o conhecimento e o desenvolvimento sócio-cultural das suas localidades com a orientação disciplinar de um campo de produção cultural historicamente implicado na reificação arcaizante da «cultura», da «identidade» e da «memória» locais e com a consciência sociológica da historicidade intrínseca dos referentes dessas noções. José Vidal